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2.1.07

O MILAGRE


Como entender algo tão grandioso se nossa mente insiste em pensar pequeno?

Imagino-me tentando arrombar uma grande porta de madeira maciça, dobradiças e fechaduras em ferro batido, trancas reforçadas e eu ali, num esforço sobre-humano me esforçando, tentando usar o que de forca ainda resta para derrubá-la.
A imagem senão ridícula se torna impossível...
Assim nos portamos diante das dificuldades da vida.
Tentamos compreendê-los pela lógica, insistimos em esmiúça-las até mesmo por não admitir nossas limitações.
O inconformismo com a derrota nos põe em alerta para a luta.
Enfrentar de frente, mostrar que elas não são maiores que nós.
Me esforço para passar por ela, dou murros, esbravejo contra a adversidade.
Ela me separa do milagre...
Preciso ultrapassá-la.
Esgotada as tentativas me prostro no maior desanimo.
Assumo minha fraqueza, me condôo de mim.
A derrota se estabelece.
Meu espírito agoniza.
Sinto-me enfim na soleira desta poderosa porta.
Ali fico, jogada, humilhada, sem recursos de retornar a batalha.
Olho para ela poderosa e me vejo frágil, acabada.
Sinto raiva de sua fortaleza, quero adentrar...tomar posse das minhas riquezas, meus tesouros.
As vezes me afasto, olho para ela de longe com pensamentos insistentes, maquinando outras possibilidades.
Ela deve possuir brechas, fendas por onde passarei orgulhosa da minha sábia esperteza.
Quero ir mais longe mas o desafio me chama de volta.
Aquietada, contemplo-a.

Vejo então....a chave.
Ela estava ali desde o primeiro momento e eu não a vi.
A posse do milagre me pertencia e eu não sabia.
Girei-a com segurança, senti a luz passando comigo os umbrais da fortaleza.
Adonei-me da benção.
Minha alma era pleno regozijo.
Meu cansaço se dissipou, ultrapassei o limite que distingue o mero conhecimento do “saber espiritual”.
A razão como bloqueio, a espiritualidade como passagem....


“Toda a natureza está cheia de milagres. Não nos assombramos com eles, porque estamos habituados a vê-los; sua repetição os opaca aos nossos olhos calejados. É por isto que Deus nos reserva milagres inesperados, além dos que se operam no curso da natureza, para que eles nos espantem pela surpresa” . Santo Agostinho


“A vida é um milagre. Cada flor, com sua forma, sua cor, seu aroma, cada flor é um milagre. Cada pássaro, com sua plumagem, seu vôo, seu canto, cada pássaro é um milagre. O espaço, infinito, o espaço é um milagre. O tempo, infinito, o tempo é um milagre. A memória é um milagre. A consciência é um milagre. Tudo é milagre. Tudo, menos a morte. — Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.”

Manuel Bandeira


Sob a Cruz dos Patriarcas

A Matriz de Lorena tem uma peculiaridade interessante – ela dá as costas a cidade.

Dizem que quando foi construída, esperavam um crescimento em uma direção e ela ao contrário do previsto, cresceu fazendo oposição.

A oposição é uma quase uma opção de vida.

Tudo lá se opõe e contrapõe

É uma cidade de contrastes interessantes.

Seu calor absurdo briga com o frescor da Mantiqueira que a acompanha, criando em quem observa de dentro da cidade, uma possibilidade de refrigério.

Politicamente é uma cidade ativa, com contrastes interessantes, rixas polêmicas com tendências fortíssimas ao progresso e um apego demasiado ao passado.

Das portas laterais da Matriz os fiéis persistem nos seus hábitos religiosos, beatas e novos agregados entram e saem durante todo o dia, suplicando a Nossa Senhora da Piedade sua proteção.

Suas festas religiosas transferem o público de trás para a sua frente, lotando a pracinha sempre vazia.

O público muda de espaço de tempos em tempos, criando uma contraposição de manifestações.

Na Praça Principal, o Arnolfo impera com seu corpo em bronze, assistindo passivo manifestações evangélicas, grupos sertanejos, pagodeiros, românticos seresteiros, apresentações de aeróbica, capoeira

Lá o comércio se instaurou com tendas, exposições de arte e um público que de tempos em tempos muda de lado.

O lado de lá tem algo de bucólico, com barracas de comidas, churros, shows, mas de uma forma menos progressista.

Lorena teima entre a modernidade e o apego ás tradições.

Lá duas cruzes formam seus símbolos, a de Cristo e a dos Patriarcas.

“Essa cruz vem-se chamando no Rio Grande do Sul, desde algo mais que meio século, simplesmente"a cruz missioneira", entendendo-se por semelhante expressão que ela, como relíquia preciosa dos tempos áureos das reduções guaranis, seja especial ou, única no gênero.

A quem estranhar o qualificativo "missioneira", lembramos que, conquanto se trate de um vocábulo de origem castelhana, por aportuguesamento se tornou um regionalismo gaúcho-brasileiro há mais de século e meio. Já então constava como tal oficialmente, e hoje se usa sem qualquer constrangimento em expressões como "região missioneira", "gado missioneiro", também "teatino" ou "jesuítico", "gente missioneira", "arte missioneira", etc. Isso mesmo nos leva a distinguir para fins de clareza, entre o termo luso "missionário" e o "missioneiro", sendo o primeiro, como substantivo, o agente pastoral e o segundo, em perspectiva histórica, o "guarani cristianizado".

“Cruz Patriarcal: Outrora conhecida como Cruz de Lorena, possui um "braço" menor que representa a inscrição colocada pelos romanos na cruz de Jesus. Foi muito utilizada por bispos e príncipes da igreja cristã antiga.”

“Cruz Cristã: Definitivamente o mais conhecido símbolo cristão, que também recebe o nome de Cruz Latina. Os romanos a utilizavam para executar criminosos. Por conta disso, ela nos remete ao sacrifício que Jesus Cristo ofereceu pelos pecados das pessoas. Além da crucificação, ela representa a ressurreição e a vida eterna.”

Símbolos tão fortes acompanham sua história, desta Lorena missioneira, com ares de nobreza, onde não faltam condes, barões.

No cemitério da cidade pode-se fazer esta viagem no tempo.

Fui convidada por Nelson Pesciotta a conhecer o túmulo da Condessa Carlota Moreira Lima.

Como nossos compromissos e horários não coincidiam resolvi ir com um amigo, numa tarde disponível.

Fui até o mausoléu e lá de dentro saiu alguém que eu conhecia mas não me lembrava de onde.

Conversando com ele me lembrei quando fiz o PAT,num Projeto de popularização da Arte, ele me ajudou pois trabalhava na Prefeitura.

Dirigi-me ao cemitério e qual não foi minha surpresa em saber que todas as pessoas que lá trabalhavam me conheciam pelo nome.

Receberam-me com muito carinho e eu coloquei minha vontade de conhecer o tal túmulo.

O responsável me disse:

D.Cida, fazem 30 anos que trabalho aqui e nunca fui lá, então lhe falei que seria uma ótima oportunidade de conhecer.

Pegamos as chaves e fomos.

Percebi um clima de medo, mas só depois vim saber das histórias que compunham aquele local.

Assombrada, coisas de corpos secos, almas penadas e coisas assim.Ao abrir a portinha do mausoleo tive de tirar os sapatos de saltos pois tive de dar as mãos para dois homens para pular a escadinha que dava acesso ao túmulo.....lindo!

Todo em mármore de Carrara, ela jazia em uma cama com manta de franjas e guirlandas entalhadas com delicadeza, uma obra de arte.

Do lado de fora um muro, cheio de divisões com flores de plástico, velas, garrafinhas d'água, santinhos mostravam outra realidade.

A pobreza e a riqueza são chocantes num cemitério, mas tem também um caráter interessante: - Em frente ao muro, como o das Lamentações, muitas pessoas choravam e oravam pelos seus mortos, enquanto Carlota ainda precisava de uma permissão para vê-la.

Sózinha no seu mausoléu, recebeu depois de anos uma fresta de luz que entrou pela portinha banhando sua caminha, aquecendo seu frio repouso.

Senti tanto carinho por esta alma!

Gostaria desta porta aberta, pessoas entrando e saindo libertando sua história...

Quem era ela?

Qual o seu papel na história da cidade? Por que o conde está em liberdade do lado de fora e ela aprisionou-se no mausoléu?

Visitei depois sua casa, atualmente a Casa da Cultura e a imaginei no seu dia a dia andando nos jardins internos cuidando das suas flores, subindo e descendo escadas, dando ordens aos empregados que deviam ser muitos, pois o Solar é muito grande.

Agora, outros personagens habitam sua casa.

Intrusos, memórias várias ofuscam sua presença.

A dona da casa teve de abdicar do seu posto para que outras histórias fossem contadas, inclusive novas histórias, da Nova Lorena, com seus poetas, escultores, pintores ocupam seus salões para dar vida a seus trabalhos.

Fico imaginando que estranho, seria imaginar minha casa sem minha presença, destituída de mim, das minhas lembranças e me reporto a casa onde nasci.

Minha casa transformou-se nossa casa em uma “ponta de estoque” de uma loja de calçados, cheia de caixas e de gente.

Quando vou lá sinto o quanto a casa ainda retém a energia da nossa família.

O assoalho de tábuas corridas traz o som do passado,

suas pinturas nas paredes, continuam ali, trazendo paisagens do nosso dia a dia.

A cozinha, hoje um depósito fala de reuniões a volta do fogão de lenha, sentadas na taipa em banquinhos, assando espetinhos de queijo nas brasas, castanhas portuguesas, milho...

As cozinhas sempre têm este caráter de agregar.

Lá se conversava muito, talvez mais que na sala de visitas... então percebo naquele silêncio povoado como é difícil enterrar os mortos.

Eles estão vivos em cada objeto, cada mancha do tempo e quando nos lembramos deles e de situações passadas levantam do seu descanso e ressurgem com vida, voltam a impregnar os ambientes, ganhando vida, avultando e tomando nossas mentes.

Nesse instante percebemos que o espaço de tempo, distância tem de ser reavaliado, a máquina do tempo entra em funcionamento e o passado se faz presente.

Como se apresentam tem também o peso do que representaram.

Lembrei-me da matéria sobre “Fantasmas em Tóquio”.

“O medo das almas, especialmente as que pertenceram a pessoas mortas em circunstâncias violentas, é um traço presente nas mais variadas culturas”.

A culpa traz de volta sensações de perseguição, tornam –se maus espíritos.

Todo esse conflito com o passado tem a ver com as responsabilidades que a modernidade assumiu com seus ancestrais, essa responsabilidade tem a ver com amor ou ódio... apegos e desapegos.

Cida Garcia
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